Artigo: “À luz da experiência de Inácio em Manresa, educar para a fé a partir da identidade da Pedagogia Inaciana”
Por Dário Schneider, diretor acadêmico do Colégio Anchieta, de Porto Alegre (RS).
Santo Inácio foi um homem de fé.
No contexto histórico e experiência espiritual de Santo Inácio, a partir da virtude teologal, podemos perceber como ele foi desenvolvendo a sua total confiança no Deus da vida que o transformou (fides qua creditor – fé pela qual o credor). E, pela fé assumida como crença, e vivida em fidelidade criativa, que se abrem novos horizontes em sua vida de fé, geradora da missão (fides quae creditor – a fé que o credor).
Das diversas experiências de Santo Inácio como homem de fé, é em Manresa que vive a experiência marcante de sua fé, empreende a sua missão de vida, pela sua convicção de homem tocado por Deus. A semente da fé em Inácio abre caminhos para o seguimento de Cristo. Antes da experiência de Manresa, Inácio era um homem que vivia “com um grande e mundano desejo de ganhar honra e fama” (Aut. nº 1). Em seu processo de conversão, a partir de Pamplona, Inácio vai compreendendo o desejo de imitar os santos e a vida de Cristo e é levado a pensar na possibilidade de fazer o mesmo, ou mais (Aut. nº 7). Desse modo, faz uma experiência existencial e mística, mediante um descentramento no qual passa de “quero e desejo” para uma atitude filial de ser “escolhido e recebido” (EE nº 98) como filho, junto da cruz, por Cristo. Percebe-se a dimensão de fé como consentimento, persuasão, experiência fundante, com raízes e profunda convicção voltada para Cristo para “mais amá-Lo e segui-Lo”.
Após a experiência em Manresa, Inácio começa a ver com os olhos da fé. A sua transição de fé acreditada para a fé vivida é acentuada, não como duas dimensões em colisão ou contradição. Ao contrário, a partir da vivência constitutiva de fé pessoal, de fé genuína como homem de fé, como homem que se percebe como criatura diante do seu Senhor e Criador, tal como expresso nos Exercícios Espirituais, no Princípio e Fundamento, diz: “o homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor” (EE, nº 23), ele se forja como pessoa identificada com Cristo. A partir dessa compreensão de viver na fé, Inácio se converte em um homem de visão, com a clareza de entendimento que gera grande alegria espiritual pela percepção de Deus como autor da criação, pleno sentido e razão de todas as coisas.
Pela fé, Inácio nasce para Deus. Com os olhos abertos ao Transcendente, ao começar a ver a vida e a realidade na qual estava envolvido, Inácio busca, insistentemente, fazer a vontade de Deus. O seu desejo e disposição de fé em buscar e fazer essa vontade foi o que lhe deu tanta confirmação; nesse sentido, ele muitas vezes pensou consigo mesmo, como diz na sua autobiografia: “se não houvesse Escritura para nos ensinar essas coisas da fé, eu estaria determinado a morrer por elas, apenas pelo que viu” (Aut. nº 29).
Em Manresa, Inácio “viu com os olhos da fé” e experimentou um movimento interior com tal clareza, que vai se convertendo ao projeto de amor, movido pelo Cristo do Evangelho que passa a assumi-lo como experiência, convicção, consolo e confirmação do chamado à vida nova.
Durante sua permanência em Manresa, Inácio não só começa a ver, mas, também, passa a entender os estágios da fé, até chegar à visão da futura missão da Companhia de Jesus. Abrem-se-lhe “os olhos do entendimento, com uma ilustração tão grande de pensamento, que lhe parecem novas todas as coisas” (Aut. nº 30). Na ilustração do Cardoner, Santo Inácio entende, em uma experiência de total harmonia, tanto de coisas espirituais, como de fé e das letras. Há uma percepção do todo. Inácio passa de um discurso e centramento em si a uma imitação dos santos, com um esforço e vontade sobrenatural de colocar a fé em prática e assim experimentar a pura gratuidade e o dom da fé, por meio do seu testemunho, refletidos em seu modo de dialogar com as pessoas e profundidade com os temas da fé e busca dos sacramentos, por exemplo da Eucaristia, comunhão com Deus e com a humanidade. Adquire conhecimento e percepção humana (letras), sabedoria teológica (fé) e caminha decidido no seguimento de Jesus Cristo, junto ao conhecimento de moções – conhecimento interno, para ordenar-se nas coisas espirituais, que exigem coerência e harmonia. Este dom do autoconhecimento o acompanha sempre.
Fé, como experiência humana e espiritual, em Inácio, não são dimensões paralelas, mas experiência de totalidade, de entrega e de complementaridade. A ilustração do Cardoner marca toda a espiritualidade inaciana: a possibilidade de buscar e encontrar a vontade de Deus em todas as coisas dá sentido novo à vida. Assim, conhecimento humano, espiritualidade como modo de vida e “sabedoria” de fé se encontram em uma circularidade fecunda.
Para Inácio, Manresa passa a ser a experiência profunda de confirmação, experiência pessoal configurada de seu ser como homem de fé, de um homem de convicções e entendimento de sua transformação, pela qual tem experimentado a profunda consolação espiritual. A partir dessa experiência de confirmação espiritual, Santo Inácio somente deseja três virtudes: caridade, fé e esperança. A experiência de fé vivida por Inácio é a fonte de sua liberdade frente ao mundo e as coisas e, também, a inspiração para dedicar-se ao ato de educar.
A fé já é, na experiência de Inácio, abertura e confiança humano-divina, raiz para identificar os desafios e oportunidades de educar para a fé dentro dos contextos de ser e pertencer a uma comunidade educativa. Ao abrirem-se perspectivas de aprofundar a dimensão pessoal e institucional de ser comunidade de fé, que, por sua vez, é, também, comunidade educativa, ou vice-versa, Deus move pessoas e instituições a processos de justiça e reconciliação, à luz da experiência de Inácio em Manresa e suas pegadas no serviço para e com os demais.
Como comunidade educativa, apoiada na intencionalidade de promover uma formação humanista e aprofundar a fé em contextos de diálogo interreligioso e multicultural a serviço da justiça e reconciliação, caracterizada em uma formação integral, tendo como base a experiência de Inácio, contribuindo para construir o modo inaciano de ser e proceder de uma comunidade educativa, a virtude pedagógica do acolhimento, respeito e abertura, individual e coletivamente à Transcendência, possibilita aprofundar os desafios e possibilidades de ser comunidade educativa e de fé. Manresa compreende um processo de atualização e releitura que rompe com os modelos do passado e se conecta com o projeto vital de diálogo atual, com a realidade do mundo em transformação, de modo que educar para a fé ajuda a lançar um olhar esperançoso e futurista que, de alguma forma, atualiza a visão de Inácio, em Manresa, considerada a grande experiência fundante e o lugar onde visualizou horizontes para a missão educativa da Companhia. Cabe, aos gestores jesuítas e leigos/leigas, aprimorar o diálogo e aprofundar o compromisso como comunidades educativas com a justiça e a reconciliação.
Assim, somos chamados a retroalimentar a nossa fé, inspirados na experiência de Manresa à beira do rio Cardoner e na busca do diálogo intercultural e multicultural, com forte compromisso com a justiça e reconciliação com Deus, com o próximo e com a Casa Comum.